Wilson Coutinho

Agosto, 2000

 

A pintura almeja o silêncio, isto é, o fluxo entre a percepção e o objeto pintado não pode integrar-se ao ruído. Se a pintura procura em sua manifestação essencial, captar o ser da coisa, isto é, extrair por meio de tinta e cores sobre a superfície, a nossa auscultação da brecha da Terra, ela faz suas exigências. Uma delas é abster-se de ultrapassar os elementos que a constituem. É deste modo, que pousa em sua própria quietação, não por que seja, a rigor, quieta. Ela se contém. É do seu conteúdo se conter, por meio da qual a forma adquire o direito do Manifestar-se. Assim, não pode ser o cenário de outra coisa senão o cenário de si mesma, seu mirar interior, o seu bastar-se por inteiro. Numa época histórica, na qual a pintura viu o esgotamento dos "ismos" e a oclusão de todas as vanguardas, ela se mantém no seu silenciar mínimo.

 

O seu ardil é manifestar as coisas, mesmo emudecendo-as de toda a sua retórica. Não se trata, na pintura de Renata Cazzani, de representar o que se espreita além, os objetos que nos cercam em sua materialidade, e em seu caso pessoal, nem mesmo representar os objetos psíquicos, interiores, ou idealidades que lhes pertencem. Na pintura de Renata Cazzani todo o evento ocorre na sedimentação do Plano.

 

É no Plano, que a pintura da artista se realiza com seu encantamento próprio. A pintora, em fase anterior, já fora por ele atraída, quando desejava fundir a matéria na superfície. Utilizando areia, por exemplo, ela buscava volumes, granulações, densidades, procurando magnetizá-lo. Nesse período "matérico" vigorava a densidade dos materiais e seu anseio "dessublimado", como se a força dos elementos, a areia, postos na tela se intercomunicassem em busca de uma absoluta tensão.

 

De uns tempos para cá, a pintura de Renata Cazzani é um labor com vistas à sublimação do Plano, suprimindo cores mais gritantes, evitando dissonâncias alteradas demais. É como se a música de sua pintura encontrasse o eco do interior de uma capela, um som baixo, em surdina, para chegar, não às tensões matéricas anteriores, mas para atingir os efeitos do Sublime. No seu caso, que não é atravessado pelo fulgor do abismo e das alturas pânicas do Romantismo, trata-se de atingir a volúpia da tranquilidade visual. Com esponjas, ela dissolve a tinta na superfície, até que apareça uma cor translúcida, venerando a luminosidade.

 

A pintora, porém, inquieta-se ao chegar a este ponto de pura formação da luz. Ela não é, por exemplo, uma artista do colorismo e postura conceituai da chamada "pintura lisa". Nos planos recortados por barras, sem a transcendência "barnettnewminiana", mas que prezam os variados ritmos espaciais do quadro, ela define formações pictóricas, que sugerem vibrações musicais.

 

As barras movimentam estruturas, no interior da tela, criando territórios, que vem anular ou dinamizar todo o espaço do quadro, portanto, são figuras do dinamismo da tela, variações musicais, dando tom à superfície. Depois, o trabalho parece exigir uma espécie de memória gráfica. Usando cola plástica, a pintora deixa sobre a tela, um grafismo que não fica exterior ao quadro, mas, ao contrário, se entranha dentro dele. Esses ícones-pictográficos, gestualidade controlada, são esvaziados do seu "estar-fora", por camadas de tinta postas sobre eles. Ali, o grafismo, se interioriza, iluminação dentro de outra, com sutis gamas de cor e transparências.

 

Alguns deles, principalmente nas curtas peças verticais, sugerem certa caligrafia chinesa e, dependendo da cor, cinza ou bege, podem trazer à recordação uma maneira de tornar abstrata e ocidental a paisagem chinesa, com seus vazios-cheios, típicos da cultura budista. O fundamental, nesta mais recente mostra· e aprofundando sua pesquisa, é que Renata Cazzani procura na pintura, o anseio que é manifestado por sua própria existência. Desdobrar no Plano, a abertura para as coisas, para a recepção perceptiva de um olhar sobre o mundo, que no seu caso, é amparado por uma luz rasgada: o gesto, com o tubo de cola, que compõe, nas suas telas, uma caligrafia luminosa do silêncio.