Masao Kamita

Abril, 2003

Horizontes de Luz

 

A recente série de trabalhos de Renata Cazzani provoca uma surpresa imediata. Para uma pintura que pacientemente buscava a anulação de identidades unívocas, surpreende a emergência de cores vibrantes, intensas e abertas nas telas atuais.

 

Nas fases anteriores, a artista empenhava-se numa espécie de pacificação dos elementos pictóricos. Mantendo uma divisão geométrica sumária dos campos de cor, Renata Cazzani lançava manchas cromáticas e grafismos soltos que se confundiam e dissimulavam as parcas faixas demarcatórias dos planos, de modo que nenhum elemento prevalecesse sobre o outro. O resultado era um todo plástico que oscilava entre o distinto e o indistinto, um curioso tipo de unidade pictórica obtida pela relativização das diferenças, daí a proximidade com os procedimentos da pintura oriental.

 

Agora, porém, as diferenças parecem cobrar presença evidente. A cor se libera passando a receber uma fatura homogênea e opaca. A luz dos amarelos, laranjas, azuis, negros, vermelhos e verdes ocupa generosos campos da tela, cortada unicamente por uma barra ora horizontal, ora vertical que divide em dois o plano da tela. Trata-se, na realidade, de um feixe cromático concentrado, mas de intensidades e modulações diversas, que libera uma carga cinética cortante, como se fossem fissuras de luz irrompendo a tela. Movimento paradoxal, como se vê, querer ativar o plano cromático superando-o com a irradiação incontida da própria luz.

 

Não se pode dizer, muito embora seja evidente a organização regular das camadas de cor, que a artista esteja visando a uma estruturação mais geometrizada da superfície pictórica. O que importa é a cor e a luz como acontecimento: a vibração da barra colorida ressoando contra um ou mais planos de cor, a irradiação luminosa irrestrita da cor que igualmente ocupa os campos da tela ou a pulsação cromática de tons diferenciados que preenchem as áreas divididas pela barra, afetando-se mutuamente.

 

Contudo, o elemento-chave destas pinturas é, sem dúvida, a barra divisória. Como marco primordial sobre a superfície, a faixa multicolorida funciona como uma autêntica linha de horizonte: não tanto como signo de uma profundidade insondável, mas como referência originária para o emergir da cor, para o nascimento das cores. Daí a feição de algo "inconcluso"-, as linhas trepidantes, os limites incertos, as cores borradas - como se os elementos estivessem em permanente busca de definição. A ausência de uma identidade cromática unitária e estável é justamente a condição para que, tal como no espectro luminoso, a barra possa conter a possibilidade de todas as cores. Por isso é feixe cromático em movimento, luz oscilante que dá abertura até mesmo ao seu oposto - a profunda escuridão. Tal marco de referência é um verdadeiro ponto de interpolação, por onde tudo passa: ela convoca, reafirmando o formato da tela; unifica, colocando em relação as cores dos planos adjacentes; diversifica, setorizando a tela monocromática. Esse elemento, inclusive, é, a meu ver, o desenvolvimento daquele grafismo livre e unificador dos trabalhos anteriores e que, aqui, ainda comparece discretamente nos planos de cor como mais uma estratégia para mobilizar o campo cromático.

 

A ideia de progresso na prática artística não é para a crítica de arte uma noção muito defensável, mas no caso das recentes pinturas de Renata Cazzani invocar a ideia da maturidade, com todos os problemas que isso implica, não me parece um despropósito. Operar um salto arriscado, encarar uma mudança aguda, depois trabalhar judiciosamente para conquistar um resultado tranquilo e afirmativo, porém aberto aos futuros desdobramentos, estas de fato parecem ser as qualidades que esta exposição anuncia e confirma.